O génio boémio que era admirado por Maradona

Opinião de Luís Aguilar, comentador SIC.

“Reconheço que não sou nenhum santo. Gosto da noite e nem a minha mãe me tira as ganas de ir para a farra. Não gosto de encarar o futebol como um trabalho. Se o fizesse, não seria eu. Jogo apenas para me divertir.”

Jorge González é mágico. O Mágico González. Um génio de fintas nunca antes vistas. O artista do estádio e da discoteca. Do golo e do copo bem cheio. Da finta e da dança. Descrevem-no como “o futebolista que podia ter sido tudo, mas não quis”.

Dá-se a conhecer durante o Mundial de Espanha, em 1982, numa altura em que já é uma estrela no seu país. A seleção de El Salvador realiza o primeiro jogo frente à Hungria e sai derrotada por 10-1 naquela que ainda hoje é a maior goleada da história dos Mundiais. Aos 55 minutos, os magiares já vencem por 5-0, mas o público presente no estádio Martínez Valero, em Elche, vibra mais com as diabruras do extremo-esquerdo salvadorenho do que com qualquer golo húngaro. Um verdadeiro recital de toques de calcanhar, “túneis”, “vírgulas” e outras acrobacias. O golo de honra de El Salvador nasce de uma dessas jogadas em que González destrói a defesa da Hungria e assiste Zapata. O estádio vibra como se fosse o golo da vantagem ou do empate, mas nessa altura a Hungria fica “apenas” a vencer por 5-1.

No final da prova, vários clubes europeus mostram interesse em contratar González. O Paris-Saint Germain avança com uma proposta, mas Mágico deixa os dirigentes do clube francês à espera no hotel enquanto dorme. Porque, segundo o próprio revela mais tarde, “Paris estava muito longe” e não era sua intenção ir para uma cidade tão grande.

Surge o Cádiz. Pequeno emblema de uma cidade no sul de Espanha. Com praia, discotecas e ambiente festivo. González aceita, mas falta à apresentação para passar uma semana na noite de Madrid. Os dirigentes do clube andaluz enviam dois seguranças para irem buscá-lo. E começa assim a saga do melhor jogador da história do Cádiz e um dos maiores talentos que já passaram pelo futebol espanhol. Kiko Narváez, futura estrela do Atlético de Madrid, nesse momento um jovem da formação do Cádiz, é dos primeiros que embarca na histeria colectiva em torno do salvadorenho: “Quando ele parava a bola, o meu coração, e o de todo o estádio, também parava.”

Os feitos dentro de campo andam de mãos dadas com muitas histórias sobre a vida fora dos relvados. Amante da noite, da bebida e das mulheres bonitas, Mágico falta aos treinos para ficar a dormir ou aparece nos jogos sem ir à cama. A direção do Cádiz chega a contratar um funcionário cuja única missão é acordar González. Numa noite, em véspera de jogo, está numa discoteca e esconde-se atrás da cabine do DJ enquanto os dirigentes do clube o procuram na pista de dança. Vão-se embora sem conseguirem encontrá-lo e Mágico continua a festa. Noutro momento, um dirigente do Cádiz leva uma banda de flamenco à sua casa para acordá-lo e ir treinar. González levanta-se e diz que só saiu da cama porque gostou da música.

Vários clubes grandes pensam em contratá-lo, mas desistem. Em 1984, o Cádiz desce à segunda divisão e o Barcelona tenta juntar González a Maradona. Uma dupla de sonho. Os catalães chegam mesmo a levar o salvadorenho para uma digressão aos Estados Unidos, mas a aventura começa mal. Querem ir buscá-lo de madrugada porque o avião tem partida marcada para as 5h. Resposta: “Às 5h? Mas se a essa hora ainda não me deitei…” González fica a dormir, perde o avião e só embarca no dia seguinte. Mas dentro do campo, com a bola nos pés, nunca há atrasos. Só magia. Só arte. Só fantasia. O pior vem sempre depois.

Josep Lluís Núñez, então presidente do Barça, desiste da contratação devido a um episódio ocorrido no hotel onde a equipa está a cumprir estágio. Certa noite, por brincadeira, Maradona faz disparar o alarme de incêndio. Todos os jogadores saem dos quartos. Todos menos um. Mágico está acompanhado por uma amiga. Uma bela californiana, como contará mais tarde. E decide não reagir ao alarme porque “não tinha por hábito deixar a meio o que acabara de começar”.

Os responsáveis do clube catalão não acham tanta piada e González recebe guia de marcha para regressar ao Cádiz. Pouco depois, encontra o Barça no torneio Rámon Carranza. Começa no banco porque tinha chegado atrasado ao jogo e entra no intervalo. O Barça já vence por 3-0. Nada de grave para Mágico. Marca dois golos, faz outras tantas assistências, o Cádiz vence 4-3 e fica com a taça. É este o estilo de Mágico. Quando quer jogar, é imparável. Manuel Irigoyen, à época presidente do Cádiz, sempre soube que era assim: “Se tivesse sido disciplinado, não tinha vindo para o Cádiz. Estaria no Real Madrid ou no Barça.”

Mas Mágico é o pacote completo. Não há o artista da bola sem o boémio da noite. Os dois são o mesmo homem. E o Cádiz, depois de muito aguentar, farta-se do comportamento da sua estrela. Sai para o Valladolid na época 1984/85. O novo clube quer impor-lhe regras e não lhe dá espaço para atuar com a liberdade a que se habituou. Durante um treino, o técnico Fernando Redondo Barnecilla insiste para que González finalize de cabeça. Reação: “Mas mister, a cabeça é para pensar, não é para jogar.”

Depois de uma época sem sucesso, regressa ao Cádiz onde é novamente recebido como um herói. Regressam os golos e as fintas memoráveis. E tudo o resto. Volta para El Salvador em 1991 e joga até perto dos 40 anos. Retira-se em 2000. Chega a trabalhar como taxista e treinador. Mais tarde, abre uma escola de futebol com o seu nome e vive como sempre viveu. São muitos os relatos das suas saídas, com sexo no meio da rua e festas que irrompem pela manhã. Mas também com muita generosidade à mistura. Contam que, nos seus tempos de Cádiz, era capaz de dar 500 pesetas às crianças que pediam esmola na rua. E por mais do que uma vez é visto a descalçar os sapatos ou a despir o casaco para oferecer aos sem-abrigo.

Maradona, já depois de terminar a carreira, diz que Mágico González é um dos dez melhores futebolistas que viu jogar. O salvadorenho passa a vida habituado a ouvir que podia ter sido um dos grandes, mas não leva a mal. Dá-se por feliz com o que conseguiu: “Se tivesse vivido de outra maneira, já não seria eu, não seria mágico. Seria o que as pessoas queriam, mas sinto-me bem como estou. Vivo numa casa humilde. Não é de ricaço, mas tão-pouco de pobretanas. (…) Quando me dizem que podia ter sido um dos melhores da história do futebol, costumo responder que nenhuma pessoa pode ser o que não é. Para mim, a vida é o paraíso.”