Martins da Cruz: “Ao convocar eleições antecipadas, Sánchez não dá tempo ao PP para se reorganizar”

Embaixador elogia a estratégia do presidente do governo espanhol, diz ser difícil achar semelhanças com a situação política em Portugal; que as maiorias absolutas são, cada vez mais, uma miragem e alerta que o país está em risco de perder poder na CPLP.

António Martins da Cruz.

António Martins da Cruz.© Paulo Spranger/ Global Imagens

Embaixador e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, esteve, entre outras, nas embaixadas de Bruxelas e de Madrid, uma capital que conhece muito bem, ou até quase que arrisco dizer, bem de mais. Aos 76 anos continua a olhar para a forma como o mundo se transforma, porque um diplomata, na verdade, nunca se reforma. Na semana em que de Espanha sopram ventos de mudanças políticas, nas regionais e nas autonómicas, o PP deu a volta ao PSOE, o presidente do governo antecipou as legislativas para daqui a dois meses.

Havia sinais consolidados de que em Espanha poderia haver uma viragem desta dimensão à direita?
Como a sua pergunta é sobre Espanha, permita-me que comece por citar um antigo diretor do Diário de Notícias, Victor Cunha Rego, que por acaso também foi embaixador em Madrid. Um dos meus ilustres, muito ilustre antecessor, porque foi um excelente embaixador. E Victor Cunha Rego, como sabem, escreveu um livro de memórias onde inseriu uma série de crónicas que publicou no Diário de Notícias na sua altura. E numa delas, sobre Espanha, dizia o seguinte: “Escrever ou falar sobre o que se passa em Espanha é muito difícil, porque os portugueses gostam muito e gostam pouco dela ao mesmo tempo. A Espanha é o maior problema internacional de Portugal, por isso o melhor é falar dela o menos possível”. Portanto, vão-me obrigar a contrariar o que disse Cunha Rego, já que vamos falar dela o mais possível. Portanto, uma viragem em Espanha. É evidente que estas eleições, que todos nós, presumo eu, seguimos com muita atenção, significaram a criação de uma nova dinâmica em Espanha, uma nova dinâmica política em Espanha, que obrigou, num golpe político-estratégico, a meu ver, muito bem visto, o presidente do governo, Sánchez, a convocar eleições imediatamente. Como sabem, quem nos lê e quem nos escuta, em Espanha, ao contrário de Portugal, e tal como sucede em Inglaterra, é o primeiro-ministro, o presidente do governo, que convoca eleições.

Mas fez bem em fazer isso já? Ou seja, do ponto de vista estratégico, ele não só perde força nas urnas como, ao mesmo tempo, durante estes dois meses de campanha eleitoral, o PP vai tentar fazer acordos com partidos autonómicos ou com o Vox. É estratégica esta convocação?
Acho que é, por várias razões. A primeira razão é que não estavam à espera deste resultado. Manifestamente o PSOE não estava à espera deste resultado. Em segundo lugar, temos de ter em atenção que o PP, a oposição, tinha quatro das 17 comunidades autónomas, passou a ter onze. E houve quatro onde não houve eleições. As chamadas regionalistas da Galiza, a Andaluzia, que fazem fronteira com Portugal, o País Basco e a Catalunha, portanto, passou a ter onze. Mas o resultado não foi tão diferente como isso, porque o PP teve 31,5% e o PSOE teve 28%, a diferença não é muito grande.

“Ao antecipar eleições, Sánchez acalma o seu partido. Porque os chamados barões, sobretudo das regiões e cidades que foram socialistas desde o fim da ditadura de Franco, estão revoltados contra o Sánchez.”

Em terceiro lugar, ao antecipar as eleições, Sánchez acalma o seu próprio partido. Porque os chamados barões, sobretudo das regiões e das cidades que foram socialistas desde o fim da ditadura de Franco, estão revoltados contra Sánchez. O atual secretário-geral do PSOE espanhol é uma linha completamente diferente do chamado PSOE tradicional. Por exemplo, a Estremadura, que é uma comunidade à qual nós devemos dar muita atenção, porque faz fronteira com Portugal, e onde Portugal tem grandes amigos, pela primeira vez desde 1976 não é socialista. Em Sevilha, a terra do Felipe González, do Alfonso Guerra, ganhou pela primeira vez o PP. E isso chocou os barões do Partido Socialista. Em quarto lugar, ele não dá tempo ao Partido Popular para se reorganizar. Porquê? Se repararem bem, na noite das eleições, que acompanhei na televisão espanhola, o Feijóo, o presidente do Partido Popular, disse na varanda do Partido Popular “estamos a preparar-nos para assumir o governo”. E o Sánchez cortou-lhe os pés e disse, “estás preparado? Então é já”. Além disso, ao antecipar as eleições, tenta evitar o maior desgaste do Partido Socialista.

Como é que olha para estes resultados? Já mencionou que a diferença não é muito grande, mas estamos a falar aqui da normal alternância de poder entre a direita e a esquerda, ou entre o PP e PSOE, ou a esquerda espanhola não está a ser capaz de responder aos problemas das pessoas?
A dicotomia ou a polaridade espanhola é diferente da portuguesa por várias razões, mas a principal razão é a seguinte: enquanto a nossa Constituição proíbe partidos regionais, em Espanha os partidos regionais são fortes. E não são só fortes na Catalunha e no País Basco como nós pensamos, são fortes na comunidade de Valência, onde perderam as eleições, são fortes nas Canárias, onde ganharam as eleições, são fortes nas Astúrias, onde ganharam as eleições, são fortes na Cantábria, onde perderam as eleições. E além disso, a esquerda espanhola está não só muito dividida, como nós não estamos a dar uma atenção que deveríamos dar ao chamado mainstream da política espanhola. Isto é, além dos partidos regionais, há partidos verdes e ecologistas que estão a ter muita força. Por exemplo, em Madrid, o partido ecologista ligado ao Más Madrid teve mais votos do que o Partido Socialista. E nós não estamos a dar atenção a isso. São realidades políticas que não temos em Portugal, é normal que nós, portugueses, ao analisarmos as eleições de outros países, tentamos vê-las pela nossa matriz, mas a matriz espanhola é diferente.

Nem o PP nem o PSOE parecem poder garantir uma maioria absoluta em Espanha. Há uma coligação de esquerda no poder, mas poderá ter de haver uma coligação de direita com o Vox, na sua opinião?
Não faço ideia nenhuma. Sabe que a futurologia é sempre arriscada em termos políticos. O Vox é uma dissidência do Partido Popular. O Partido Popular, a direita espanhola, teve duas dissidências: os Ciudadanos, que está em vias de acabar, aliás, de tal maneira que não quer concorrer às próximas eleições, e o Vox, que saiu pela direita. Se juntarmos, segundo as últimas sondagens, ou se quiserem a projeção para resultados nacionais das eleições autárquicas e regionais que houve, o Partido Popular não chega à maioria absoluta. E mesmo juntando os votos possíveis que o Vox poderá ter, ficariam a quatro ou cinco deputados da maioria absoluta. O que não é garantido, porque como não houve eleições nas autonomias onde os partidos regionais são fortes, como a Catalunha, o País Basco e a própria Andaluzia, não é fácil fazer a projeção dos resultados. De modo que nada garante que o PP, mesmo com os votos do Vox venha a ter a maioria absoluta. E pode ter de socorrer-se de partidos regionais. Não nos podemos esquecer, por exemplo, que o último governo do Partido Popular não tinha a maioria e foi buscar votos no Parlamento ao Partido Nacionalista Basco, que agora apoia o Partido Socialista. Porquê? Questões de dinheiro. Tudo questões de dinheiro e financiamento. Não nos podemos também esquecer de outra coisa: Espanha é um país federal que não gosta que lhe digam que é um país federal. Mas, por exemplo, no sistema de impostos em Espanha, há quatro sistemas de impostos. Não vou estar a aborrecê-los com isso, mas já que falámos do País Basco, há regiões. Por exemplo, em Navarra, todos os impostos cobrados em Navarra, o IRS, o IRC e o IVA, ficam em Navarra, não vão para os cofres do governo em Madrid, enquanto no País Basco há impostos que ficam logo nos cofres do País Basco e outros que Madrid vai receber. E é este jogo, toma lá impostos, dá cá impostos, que faz com que alguns partidos regionais se associem ou à direita ou à esquerda. E isto é uma incógnita que não sabemos para as próximas eleições.

Portanto, ali o dinheiro ultrapassa a ideologia mais facilmente.
Como é costume, infelizmente. Assistimos muitas vezes em política, é uma coisa que nenhum de nós gosta, mas há políticos para quem os fins justificam os meios. É uma pena, mas é assim.

A possível chegada da extrema-direita, num cenário hipotético, mas a possível chegada da extrema-direita espanhola ao poder, por via direta ou por via indireta, é uma má notícia?
A chegada de uma direita radical ao poder é sempre uma notícia que não é agradável, até porque não sabemos qual é o comportamento desses partidos. Temos algumas experiências de direitas radicais que ou vão entrar no poder em breve, como é o caso da Finlândia, ou já estão no poder, como é o caso de Itália, como é o caso da Áustria, penso que há nos países de leste também e a própria Hungria. O que é que temos de distinguir? Quais são as coisas importantes que são para nós? São a favor da União Europeia ou não? São a favor da NATO ou não? Porque são dois pilares essenciais para a projeção internacional de Portugal na Europa. Depois, o que vemos é que, às vezes, os partidos ditos de direita radical continuam na direita radical e há outros partidos, como por exemplo o italiano, vejam Meloni, que foi ao G7, tem a posição que temos todos contra a guerra na Ucrânia, está de tal maneira caldeada pelo poder que até o PPE anda atrás dela, salvo seja, para ver se ela entra no PPE. Portanto, quando falamos de direita radical é preciso ver com alguma nuance.

O que está a acontecer com Meloni pode acontecer em Espanha, com a direita mais radical espanhola?
Não faço ideia. Até agora, Abascal não tem um discurso nesse sentido, mas sabe que o poder às vezes modifica as pessoas. Não faço ideia. Como lhes disse, tenho uma visão mais de Estado do que partidária destes temas, mas em política não é bem como no futebol, o que é verdade hoje, amanhã já não é, as coisas movem. Em política acontece outra coisa, a dinâmica das coisas vai reforçando e modificando as próprias coisas.

E falando em estratégia política, pode o PSOE seguir aqui uma estratégia talvez um pouco parecida com a de António Costa de colar o PSD ao chega? Pode o PSOE também seguir uma estratégia de tentar colar ao máximo o PP ao VOX e com isso, no fundo, retirar-lhes aqui alguma margem de manobra?​​​​​​

Seguramente. A campanha vai ser muito dura. O PSOE já soltou nas redes sociais, ontem creio eu, um filme em que recordava os atentados da Atocha, a guerra do Iraque, tudo aquilo que aconteceu, na perspetiva deles, negativo durante os governos do PP desde os últimos 20 anos. A campanha vai ser muito dura. E é óbvio que eles vão, a esquerda toda, e não falamos na extrema-esquerda, no Podemos, que em princípio vai estar a diluir-se ou vai desaparecer, porque o Sumar foi ontem inscrito como partido político, coisa que a senhora Yolanda Díaz, a vice-presidente, tinha dito que não ia fazer, mas fez, e isto é obviamente para reduzir o Podemos, mas vai tentar colá-los. O PP também se vai defender. E já há uma tendência em Espanha, aliás, já há quem o tenha escrito e dito, porque há várias comunidades em que o PP, para ir para o governo regional, tem de se associar ao Vox, por exemplo na Estremadura e em outras comunidades. E já se diz que o PP vai seguir a seguinte tática: não vai fazer nada, não vai formar governos até ao dia 23 de julho, para não poder ser acusado de que está a fazer governos com o Vox.

O Vox, dizem alguns analistas espanhóis, tanto assusta a direita democrática, como entrega votos à esquerda, precisamente com medo da extrema-direita. O PP vai ficar nessa encruzilhada?
Não faço ideia. Sabe que é a primeira vez na Península Ibérica, se assim podemos dizer, que este problema se coloca. Não faço ideia. O PP não tem interesse nenhum em colar-se ao Vox e em deixar-se colar ao Vox. Não tem interesse nenhum. Qual é a estratégia que vai seguir além de, como já referi, adiar a formação de governos em que precisa do Vox, quer nas comunidades autónomas, quer nas próprias cidades, porque isso também acontece em diversas cidades como, por exemplo, em Valência. Vai tentar descolar-se, enquanto o PSOE vai fazer exatamente o contrário, vai tentar colar o PP ao Vox. Portanto, vamos assistir a uma campanha de gato escondido com o rabo de fora, se assim podemos dizer. Vai ser uma campanha dura, mas vai ser uma campanha, de um ponto de vista político, muito interessante de seguir.

“É difícil transpor o que se passa em Espanha para Portugal, onde o mainstream político é diferente do que se poderá passar em Espanha. Em Portugal não temos partidos regionais, portanto, as eleições são mais líquidas.”

Extrapolando para Portugal, o PSD está numa dinâmica ascendente, pode ter de fazer pactos com o Chega para conseguir formar um governo. Há aqui alguma similitude em relação ao que está a acontecer em Espanha?
Sabe que as similitudes entre Portugal e Espanha são sempre difíceis. Vou-lhe dar um exemplo. Os espanhóis matam o touro nas touradas, matam o touro em plena praça, com os espectadores todos a ver. Em Portugal, nas touradas matamos o touro às escondidas no curro, depois da tourada, somos completamente diferentes dos espanhóis. E enquanto os espanhóis falam no imperativo, nós falamos no condicional. Posso dar-lhe um exemplo: um espanhol chega a um bar e diz “”Põe-me uma cerveja””, mas um português chega a uma leitaria e diz “Ó, senhor Silva está bonzinho? A sua mãezinha está melhor? Se não lhe desse trabalho, o cafezinho do costume””. É a diferença entre portugueses e espanhóis.

Espanha é muito mais importante para os portugueses do que Portugal para os espanhóis e não temos às vezes essa noção. Portanto, acho difícil estar a transpor para Portugal, onde o mainstream político é completamente diferente do que se poderá passar em Espanha. Em Portugal não temos partidos regionais, portanto, as eleições são mais líquidas, se assim pudermos dizer, do que em Espanha. Em segundo lugar, temos em Portugal uma maioria parlamentar com um largo horizonte constitucional. Portanto, esse problema que me coloca, numa análise de Estado que posso fazer, esse problema, se vier a colocar-se, não se coloca já.

 

“Em Portugal e noutros países, as europeias servem para castigar os governos. Cada um tira as conclusões que mais servem a sua estratégia política. Não sei se as eleições europeias podem criar uma nova dinâmica política em Portugal, tudo dependerá das abstenções.”

 

Em Portugal falou-se tanto de dissolução e afinal aconteceu foi aqui ao lado. Haveria em Portugal mais razões para o fazer do que em Espanha ou temos de esperar pelas europeias como os espanhóis tiveram de esperar pelas eleições locais?
Não faço ideia nenhuma. Como se sabe, as primeiras eleições europeias coincidiram com as eleições legislativas. E o partido mais votado, que foi o PSD, teve uma diferença de quase 15 pontos entre as duas. Porque as europeias, primeiro, não despertam o interesse do eleitor, não é só em Portugal, é na Europa em geral. E em Portugal e noutros países também, normalmente servem para castigar os governos. E como já todos sabemos isso e os partidos políticos também, cada um tem o seu discurso, cada um tira as conclusões que mais lhe aprazem e as conclusões que mais servem a sua estratégia política. Não sei se as eleições europeias podem criar uma nova dinâmica política em Portugal, não faço ideia. Penso que tudo dependerá das abstenções, dos resultados. Infelizmente, as eleições calham num dia mau para nós, porque calham entaladas entre feriados ou na véspera de feriados. E, portanto, pode-se pensar, mesmo com os votos em mobilidade, e que em boa hora o governo está a acelerar, pode-se pensar, primeiro, que as abstenções vão ser grandes – como já são habitualmente nas europeias -, e, em segundo lugar, não sei se podemos extrapolar para o plano nacional o resultado das europeias. É evidente que no dia das eleições todos irão à televisão dizer que ganharam. Nunca vi um partido político a assumir uma derrota na televisão, mas cada um vai ter a sua interpretação. O que nos interessa, penso eu, é qual é que vai ser a perceção dos portugueses quanto ao resultado das europeias. Assim como qual vai ser a perceção dos portugueses quanto ao resultado das eleições espanholas também, porque vai haver perceções diferentes na cidade e no campo, vai haver perceções diferentes no norte e no sul.

 

“Numa democracia a alternância é essencial para evitar hábitos que podem ser encarados como menos próprios, num ângulo democrático (…) Quanto ao timing da alternância, isso é preciso perguntar aos eleitores.”

 

E olhando ainda para Portugal, será a esquerda que não está a dar resposta aos muitos problemas dos cidadãos, que enfrentam atualmente a inflação, taxas de juros, a dificuldade toda dos cidadãos portugueses, ou será que realmente já é um tempo de alternância entre a esquerda e a direita e poderemos estar aqui perante um fim do ciclo do PS e o início de um outro do PSD?
Numa democracia a alternância é essencial. E é até essencial para evitar hábitos que podem ser encarados como menos próprios num ângulo democrático. É normal, isto acontece em todos os países, não é só em Portugal, nem é só em Espanha, acontece em todos os países. Talvez menos em Itália, como mudam de três em três meses o governo, às vezes, agora está mais estável. Mas acho que alternância é sempre bom, é sempre bom até para aproveitar os quadros que os partidos têm. Todos os partidos têm, em princípio, bons quadros, que estando a ocupar funções no Estado de âmbito governativo ou de escolha governativa, podem ser úteis e geralmente são úteis ao país. Portanto, a alternância é um bom princípio. Quanto ao timing da alternância, isso é preciso perguntar aos eleitores. E não sei, neste momento, honestamente, se olharmos para as sondagens em Portugal, não creio que neste momento – o que não quer dizer que daqui a três ou quatro meses a situação não seja diferente -, mas agora se houvesse eleições, não creio que o resultado seria muito diferente daquele que existe. Porventura, o partido maioritário, o Partido Socialista, poderia não ter maioria absoluta, mas tudo leva a crer que ficaria, neste momento, em primeiro lugar nas eleições. Se calhar é mesmo por isso que o Presidente da República hesita em dissolver o Parlamento. Também não sei, na sua análise, se ele tem razões para isso.

Mas, na sua opinião, devia ou não devia haver, nesta altura, ou seja, este mês ou mês que vem, eleições antecipadas em Portugal?
Acho que não e explico-lhe porquê. Como lhe disse, não tenho muito visão partidária, tenho mais uma visão de Estado e acho que a dissolução de um Parlamento, tal como acontece agora em Espanha, é sempre uma alteração dos ritmos da democracia e é sempre uma alteração dos ritmos políticos. E, portanto, não creio que haja razões suficientes em Portugal para haver uma dissolução do Parlamento por causa dos acontecimentos que todos sabemos que acontecem.

Não acredita que o país saísse a ganhar, é isso que está a dizer?
Não, mas também não estou a dizer que saísse a perder. Não creio, em primeiro lugar, que o que se passou justifique uma dissolução do Parlamento e, em segundo, acho que um partido que ganha as eleições tem o direito, ou pelo menos a expectativa, de chegar até ao fim, a não ser que aconteça uma alteração na predisposição do eleitorado. E aí a sua pergunta tem sentido. Se houver uma hecatombe nas eleições europeias em relação ao partido que está no poder, aí sim, aí pode-se dizer que já não é por causa do caso A, B ou C, é porque a perceção do eleitorado, o sentimento do eleitorado, como ficou demonstrado, é completamente diferente. E aí poderia haver uma justificação.

“Temos de ter a noção do seguinte: quando estamos a pôr em causa os Serviços de Informações ed Segurança, estamos a pôr em causa a credibilidade externa de Portugal.”

E por falar em caso A, B ou C, antes de ligarmos o microfone trocávamos impressões sobre o caso do SIS. Como é que olha para o atual funcionamento das instituições e parece-lhe que está em causa a sua eventual instrumentalização?

​​​Fico sempre surpreendido quando vejo pôr em causa os Serviços de Informação e Segurança. Os Serviços de Informações de Segurança são essenciais para a proteção da democracia, são essenciais para a proteção do nosso sistema, não só na luta contra o terrorismo, na luta contra potências estrangeiras, na luta contra o cibercrime, tudo isso. E, portanto, pôr em causa os serviços de informações causa-me sempre alguma preocupação. Tanto mais que acho, e tenho essa experiência das diversas funções que desempenhei ao longo da vida, apoiei-me sempre sobre os relatórios dos nossos serviços de informações, que são bons, são bem feitos, normalmente as análises são boas. E temos de ter a noção do seguinte: quando estamos a pôr em causa os Serviços de Informações de Segurança, estamos a pôr em causa a credibilidade externa de Portugal. Estou seguro, neste momento que a minha colega, Graça Mira Gomes, está a fazer, como fez sempre ao longo da sua carreira, o melhor que sabe e o melhor que pode fazer para garantir a isenção, a independência e o bom trabalho dos serviços que ela tem a responsabilidade de coordenar. Portanto, como lhe disse, custa-me sempre ver pôr em causa os serviços, porque isso afeta a nossa credibilidade e pode até afetar a cooperação, que é essencial nos dias de hoje entre os nossos serviços de informação e os serviços estrangeiros ocidentais, porque essa colaboração é essencial para a nossa defesa, para a nossa segurança, para a luta contra o terrorismo, para a luta contra a grande criminalidade, para estas formas modernas de guerras híbridas, como são a cibersegurança, é fundamental a colaboração entre os nossos serviços. Não podemos deixar que, por razões de política interna, que são certamente louváveis, e não estou a criticar os partidos, mas a luta política, a luta partidária é a luta partidária, todos sabemos o que é, mas o que me custa ver é pôr em causa a credibilidade dos nossos serviços, porque isso pode afetar a nossa credibilidade e a cooperação com os serviços externos.

Por toda a Europa tem havido viragens à direita, estávamos a falar disso há pouco, umas mais pronunciadas, outras menos, mas há um regresso aos partidos da direita tradicional, como na Grécia, ou da direita mais radical, como em Itália. Quais são, na sua opinião, as principais razões para estas mudanças?
São várias as razões e ainda não acabaram, porque a Europa não é a mesma desde que começou a guerra na Ucrânia e não vai ser a mesma quando terminar a guerra na Ucrânia, isso seguramente. Estamos a assistir a grandes mudanças na Europa e de um ponto de vista político, depende dos países, estamos a assistir a uma polarização das forças políticas em todos os países, e isso significa que a dicotomia centro-direita, centro-esquerda, que nós como portugueses estamos habituados a analisar, como os partidos que se alternam no poder, está a dissipar-se noutros países europeus. E repare, a Europa que nós, em princípio, vamos ter pela frente, é possível que ainda acelere mais esse movimento. Veja bem, as duas últimas intervenções, a primeira em Praga e depois no Parlamento Europeu, do chanceler Scholz, da Alemanha, são muito significativas.

O que é que o chanceler Scholz defende? Duas coisas, e as duas são negativas para Portugal, na minha opinião, e pelo que sabemos e pelas declarações que temos visto, têm preocupado o nosso governo. Primeira coisa, o alargamento a leste. Neste momento, temos dez candidatos a bater à porta da União Europeia. Há um que em princípio não vai entrar, que se chama Turquia, mas entrarão nove, em princípio. E há a Alemanha a fazer força todos os dias para que eles entrem, não só a Alemanha, os outros também. Isto significa que os países do centro e do leste da Europa passam a ser maioritários na Europa. O eixo político da Europa desvia-se para leste, os países do sul e do Mediterrâneo, nos quais se inclui Portugal, passam para uma segunda ou uma terceira linha. Acabam os fundos estruturais, porque todos esses países têm um PIB per capita inferior ao português. O segundo tema do chanceler Scholz é acabar com a unanimidade em política externa. Posição que Espanha apoia, porque houve nove países a semana passada que enviaram uma carta para ser acelerado esse processo. Isto significa, no dia em que acabar a unanimidade em política externa, que os países da CPLP não precisam de Portugal para nada. Vão diretos a Bruxelas. Portugal deixa de ser o interlocutor, porque perdeu o poder de defender os seus interesses no Conselho Europeu e nos conselhos ministeriais da União Europeia. São duas coisas que estamos a antever para a Europa. E sei que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus já se tem referido várias vezes a este tema e sei que o tema está a ser analisado com profundidade pela diplomacia portuguesa, porque é importante para a nossa política externa. Mas esta é a Europa que vamos ver amanhã.

Além disso, ainda há outro tema, e esse preocupa mais Espanha do que preocupa Portugal, que é o seguinte: depois da saída dos ingleses, do Brexit, a Europa, tal como existia já antes, mas se acentuou, baseou-se sempre no eixo Paris-Berlim de onde partiam as grandes iniciativas. O eixo Paris-Berlim, atualmente, está desequilibrado. Primeiro, desequilibrou a favor de França, com a substituição da senhora Merkel, e agora desequilibrou com a guerra da Ucrânia a favor da Alemanha.

Mas qual é o país que está a crescer na Europa? A Polónia. Onde é que o presidente Biden veio duas vezes à Europa? À Polónia. Não foi a Paris, nem a Londres, nem a Berlim. Foi à Polónia. A Polónia, neste momento, é o porta-voz dos países do centro e leste da Europa. O tal eixo que se vai deslocar com o alargamento. E isso significa o seguinte, e deve preocupar Espanha, porque há uma instituição que não está nos tratados, mas funciona e que existe e que se chama o Diretório. Com a saída de Inglaterra, Espanha que era o quinto país, subiu para o quarto país e passou a fazer parte do Diretório. O Diretório não reúne a propósito de todas as coisas, mas reúne muitas vezes, em Bruxelas, em reuniões informais e até ministeriais, que não vêm para a imprensa muitas vezes, para coordenar posições. Se a Polónia assume uma posição forte, Espanha tem de pensar duas vezes. É outro dos temas que nos pode afastar de Espanha no horizonte europeu.

A perda de influência de eleitorado dos chamados partidos tradicionais está a abrir portas a franjas mais radicais, que no futuro vão ser decisivas para a formação e para o equilíbrio de governos?
Seguramente. E seguramente isso já está a acontecer em vários países, é acentuado em países onde os partidos regionais têm poder. Mas temos de ter uma noção que é a seguinte: em muitos países da Europa, não diria a maioria, mas em muitos países da Europa, os governos são de coligações. Os nórdicos são quase todos de coligações. A Alemanha, coligação, neste momento, com três partidos. Penso que isso poderá estender-se, embora ache que vai demorar mais nos países do Sul. A Itália é uma exceção, mas a Grécia não é. Espanha também teve uma coligação, aliás, estamos a esquecer-nos que até hoje, o governo espanhol é uma coligação de vários partidos.

E isso transforma o desempenho dos governos quando estão seguros ou presos por outros partidos mais pequenos, mas que são mais radicais e que têm uma agenda mais radical?
Sabe que a diplomacia é, entre outras coisas, a arte dos compromissos. E, portanto, os compromissos na área governamental nunca são maus, por definição. Tudo depende se os membros da coligação estão ou não radicalizados. E aí vão obrigar o governo a dirigir-se para outros em outras áreas que podem ser consideradas de fragmentação. Foi, aliás, uma das coisas de que é acusado o presidente do governo espanhol, Sánchez, por mau resultado das eleições há dias, é por ter aceitado propostas de fragmentação social do Podemos, da Unidas Podemos, por exemplo, no que diz respeito às violações. E estas fragmentações têm um custo, ou podem ter um custo, em termos eleitorais. Têm seguramente um custo em termos sociais. Depois, se em termos sociais há força para ter uma expressão eleitoral, isso não sei, mas podem ter.

Pelas suas palavras, se os governos vão gerir cada vez mais em compromisso, então as maiorias absolutas serão, cada vez mais, uma miragem?
Se olharmos bem para a Europa, é cada vez mais difícil haver maiorias absolutas. Veja-se o caso dos nórdicos, onde nunca há maiorias absolutas, a própria Alemanha, onde não há, a Itália, ainda há menos, França não tem maiorias absolutas, têm de ter compromissos. Penso que a polarização e o aparecimento de pequenas forças políticas que representam interesses específicos da sociedade moderna podem levar a isso.

Cada vez será mais difícil haver maiorias absolutas. Não me choca nada, porque isto vai obrigar os partidos políticos a entenderem-se. E ao entenderem-se, têm de traçar o chamado mínimo denominador comum, têm de assinar um documento em que estão todos de acordo. Isso é positivo porque permite a governação.

O que é que pode ter de negativo? Pode ter de negativo ser muito mais difícil fazer reformas estruturais. Porque as reformas estruturais, em princípio, exigem uma posição forte nos parlamentos para apoiar. Pode ser mais difícil. Mas penso que a Europa se inclina cada vez mais para isso. Custa-me dizer isto, mas não sabemos o que vai ser a Europa daqui a uns anos. Não sabemos até que ponto a ordem mundial vai alterar-se, se vai haver ou não uma desglobalização e como é que vai haver, que repercussões é que isso tem na ordem europeia, o que é que vai acontecer depois da guerra na Ucrânia, mas sabemos que já alterou a nossa vida todos os dias, com a inflação, por exemplo. Ainda não houve o que os americanos chamam de Ukraine Fatigue, ou seja, as populações, as nossas e as europeias, ainda acham que vale a pena ajudar a Ucrânia. Mas vai alterar muito, e como referi, os alargamentos, isto vai alterar a composição e os equilíbrios na Europa. E isso pode ter repercussões imediatas nos países. Portanto, é cada vez mais difícil falar no futuro. Podemos fazer projeções, mas é cada vez mais difícil.