Crônica de José Fernandes: “Índole Brutal”

LAMENTANDO O FATO, e apenas como exemplo para não ser seguido por tratar-se de algo deplorável, lembro que, aos nove anos, meu pai me encaminhou para aprender uma profissão, costume adotado pela maioria dos pais na nossa pequena cidade, e fui aprender a fazer sapatos, chinelos e alpercatas com um primo, casado e ainda moço, dono de uma mini oficina instalada na sala alugada de uma residência, que ao lado também abrigava um pequeníssimo comércio, onde a filhinha do dono, menina de dez anos, substituía-o, vendendo frutas, ovos, querosene e cereais.

Como eu e a menina nos tornáramos amigos, ela, um dia, na hora da merenda, presenteou-me com uma laranja. Meu primo, dono da sapataria, observou esse a cena e, maldosamente, quando o pai da menina chegou, contou-lhe que estava havendo namoro na casa, entre o Zeca (eu) e a filha dele – namoro que só existia na mente distorcida daquele primo sapateiro.

O pai da menina, ignorante e violento, imediatamente aplicou uma violenta surra na filha franzina, usando o grosso e longo chicote com que tangia porcos e, não satisfeito, partiu em minha direção, com o mesmo chicote em riste, para aplicar-me idêntica sova. Se o chicote me atingisse poderia, entre outros danos, vazar-me os olhos. Surpreso, mas lépido, saí correndo, atordoado, pela rua afora, e o pai da menina no meu encalço até chegarmos à porta da minha casa próxima, de onde, por coincidência, saía meu pai, que, percebendo a iminência do ataque contra mim, atracou-se com o agressor, tomando-lhe o chicote, não se consumando uma briga fatal em razão da salutar intervenção de terceiros.

Após ter sido violentamente surrada, a amiguinha, que já era fraca, nunca mais gozou saúde, vindo a falecer, algum tempo depois, de tuberculose, talvez até mesmo em consequência da violenta surra que sofrera, possível causadora da drástica redução da sua passagem na Terra.

Relembro, ainda com tristeza, esse fato ocorrido há mais de meio século, somente para mostrar de que
são capazes a estupidez e a ignomínia de pessoas de índole cruel, que conspurcam o alto sentido da existência dos seres.