Para muitos afegãos, Cabul “ainda está a cair”, um ano depois

O Afeganistão caiu nas mãos dos talibãs a 15 de agosto de 2021, durante a retirada das tropas norte-americanas do terreno, mas para muitos afegãos, Cabul “ainda está a cair” um ano depois, segundo a jornalista Nelufar Hedayat.

Éisso que a afegã-britânica conta no novo ‘podcast’ “Kabul Falling”, uma iniciativa do Project Brazen com o testemunho de muitos afegãos que estavam no país quando os extremistas regressaram ao poder.

“Em agosto passado, o mundo assistiu a milhares de afegãos a convergirem no aeroporto de Cabul desesperados para fugirem. Vinham de todos os cantos do país e sabiam que escapar era uma questão de vida ou morte”, descreve Hedayat.

“Os talibãs ameaçavam apagar reformas conseguidas a custo e desfazer duas décadas de progresso praticamente da noite para o dia. Por isso, as pessoas meteram-se em autocarros, empurraram, suplicaram, algumas agarraram-se às laterais dos aviões do exército americano quando levantavam voo”.

No ‘podcast’, as pessoas que passaram pela queda de Cabul descrevem do seu ponto de vista o que se passou nas semanas em que a liderança democrática do país caiu. Hedayat salienta que é comum falar dos afegãos e da suas dificuldades, mas raramente eles são ouvidos.

Rodaba, uma jovem universitária em Herat, estava numa padaria com a mãe a 13 de agosto quando começou a ouvir tiros de metralhadora e teve de fugir. Os talibãs tomavam a cidade enquanto Rodaba e a família se escondiam em pânico, demasiado assustados sequer para comer.

“Desta vez, percebemos que tudo o tínhamos feito e tudo o que tínhamos conseguido estava liquidado”, diz a estudante. “Não há mais futuro no Afeganistão”, concluiu.

As mulheres tinham conseguido um lugar na sociedade durante os últimos vinte anos, acedendo a educação e todo o tipo de empregos. Ogai Wardak era jornalista do canal de televisão ZAN TV, o primeiro dedicado a mulheres que tinha liderança feminina à frente e atrás das câmaras.

Rodaba e Ogai nunca tinham vivido sob a opressão ultrarreligiosa dos talibãs. Tudo o que conheciam era o Afeganistão em busca da democracia.

“Como é possível?” perguntava Ogai ao pai, quando se viu apanhada no pânico das ruas de Cabul a 15 de agosto. “Foi-se o país. Não há nada”, resumiu.

Desportista ávida e reconhecida pela presença na televisão, Ogai tornou-se um alvo, tal como todas as mulheres que não encaixavam no comportamento submisso e invisível que os talibã preconizam para o sexo feminino.

A jornalista descreve o terror das buscas porta a porta executadas pelos talibãs em busca de mulheres ativistas, em que pensou: “Ogai, não há mais vida para ti. Vão matar-te”.

O fundador da ZAN TV, Hamid Samar, mandou os empregados ficarem em casa e assistiu aos polícias a mudarem dos uniformes para as túnicas tradicionais, com medo dos talibãs. Estava em choque, a tentar navegar as ruas com trânsito parado e toda a gente a tentar fugir.

“Aconteceu em menos de 24 horas. Os 21 anos de conquistas, objetivos, visões, tudo acabou. E voltámos para trás um século”, ouve-se Hamid dizer.

Fatima Faizi, jornalista do New York Times, era um alvo especialmente visível. Disseram-lhe para meter alguns pertencentes numa mochila, deixar tudo para trás e ir para o aeroporto de Cabul para tentar sair.

Mas havia milhares de afegãos desesperados em busca do mesmo. Pontos de controlo armado dos talibãs dificultavam o acesso ao aeroporto, e até quem tinha os papéis todos em ordem podia ser barrado pelos seguranças.

Fatima não tinha bilhete nem visto, só uma carta do New York Times. Ela e a família passaram mais de 14 horas no aeroporto sem água, sem comida, sem casa de banho e sob o sol escaldante de agosto. As súplicas de ajuda foram ao encontro de um militar americano, de cerca de vinte anos, de olhos exaustos e lábios secos. Ele também estava desidratado. Era uma situação impossível para todos.

Para Abdul, que trabalhou como tradutor para a CIA e o exército norte-americano em Kandahar, o perigo era iminente. Os talibãs já o tinham ameaçado no passado e ele sabia que viriam atrás dele e da família.

Apesar do visto especial que tinha conseguido, os militares não o deixavam passar. Metido até aos joelhos em água de esgoto, Abdul tentou durante horas sem sucesso. Quando regressou para ao pé da família, dois filhos tinham sido pisoteados e espancados.

A janela de oportunidade estava a fechar-se naqueles dias finais. “Eu disse à minha família que esta era a última oportunidade” conta Abdul. “Se conseguirmos, conseguimos. Senão, não teremos outra oportunidade”, disse-lhes.

“Kabul Falling”, disponível nas plataformas de ‘podcasts’, é uma série de oito episódios de cerca de trinta minutos cada, divulgados às segundas-feiras.

O lançamento coincide com o primeiro aniversário da retoma do poder pelos talibãs, quando o Presidente norte-americano, Joe Biden, ordenou a retirada das tropas norte-americanas, na sequência do acordo assinado por Donald Trump em fevereiro 2020 para esse efeito.