Clara Pinto Correia: adeus, princesa

Clara Pinto Correia: adeus, princesa

Vítor Higgs

O tédio devora o mundo. Naturalmente é preciso pensar um bocado para nos darmos conta disso; não é coisa que se veja logo. É uma espécie de poeira. Anda-se no meio dela sem a ver, respira-se, come-se, bebe-se, e é tão fina, tão ténue, que nem sequer estala entre os dentes”, dizia o padre de Bernanos em Diário de um Pároco de Aldeia, um livro outrora bem célebre, mas hoje mais do que esquecido.

O mínimo que pode dizer-se de Clara Pinto Correia, goste-se ou não dela, é que tem contribuído, e muito, para esconjurar ou minorar o tédio do mundo, ao menos deste que é o nosso, piccolo e lusitano. Fê-lo sempre, é certo, num jeito que lhe é seu, muito próprio, por vezes desconcertante, quiçá original em excesso, até porventura inautêntico, mas nem por isso, suspeita-se, menos dolorido e sofrido, e, logo, também ele sujeito à implacável lei do tédio e da finitude, que tudo converte em pó, et in pulverem revertis, disse-o um pregador famoso, agora também olvidado, o padre Bartolomeu do Quental: “Os que sois ouro, e andais sobre as cabeças das estátuas, não presumais; os que sois barro, e andais pelos pés delas, não desmaieis, que o barro e mais o ouro se hão-de converter na mesma cinza.” (Sermão da Cinza, 1662).

Nos seus tempos de oiro, muito novinha, Clara chegou a ser grande estrela, figura de primeira plana, teve o país na mão, rojando-lhe os pés e o ego. Aos 25 anos, publicou Adeus, Princesa, aclamado pelos críticos mais distintos, que o classificaram como “um dos livros notáveis de 1985” (Vasco Graça Moura) ou “uma obra extremamente interessante, plena de irrequietude, de humor, de gozo e desfastio, e também de ternura profunda” (Urbano Tavares Rodrigues), reveladora de “uma imaginação inquieta e um extraordinário ouvido para as falas coloquiais” (Fernando Assis Pacheco). Num programa de televisão, Maria João Avillez falou de uma “obra-prima”, que em parte o era e é, sem dúvida. Depois, por uma cruel sucessão de desastres, uns próprios, outros alheios, a fama cobriu-se de lama, Clara entrou em perda e em queda, despenhou-se dali abaixo – e hoje é colunista do Página Um. As últimas notícias dela, buscadas na Internet, dão conta do desaparecimento e morte do seu antigo marido, o fotógrafo Pedro Palma, que a retratara em momentos de orgasmo e êxtase, posteriormente exibidos numa exposição intitulada “Sexpressions”, patente em 2010 no Centro Cultural de Cascais.

A protagonista da mostra ou amostra, Maria Clara Amado Pinto Correia, nasceu em Lisboa, em 30 de Janeiro de 1960, sendo a mais velha das quatro filhas de José Manuel Duarte Pinto Correia, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e ao tempo uma das maiores sumidades mundiais no ramo da gastroenterologia, e de Maria Adelaide da Cunha e Vasconcelos de Carvalho Amado, médica, que, por alturas do seu falecimento, em Agosto de 2015, Clara recordou no Facebook como uma das primeiras mulheres da sua geração a usar calças e uma das primeiras do seu grupo de amigas a trabalhar e a criar as filhas ao mesmo tempo.

Em entrevista a Paulo Anunciação, publicada no Record, de 18/11/2014, a mais velha das irmãs Pinto Correia afirmou que foi “giríssimo” crescer numa casa rodeada de mulheres – ela e as três manas, Rosário, Teresa e Margarida, mais a mãe, a avó, que viveu com elas até morrer, uma empregada doméstica e uma mulher-a-dias – e ainda hoje considera que “a minha família é a melhor do mundo” e que “é óptimo pertencer a uma família muito grande e onde as pessoas gostam imenso umas das outras.” Excluído do gineceu, o professor Pinto Correia sobreviveu como pôde, ao ponto de a sua primogénita reconhecer que, no meio daquele mulherio todo, “para o meu pai talvez não tenha sido a coisa mais divertida do mundo.” Em casa, e fora dela, chamavam-lhe “o Professor” e, num comovente depoimento que prestou para a newsletter da Faculdade de Medicina (n.º 82, Outubro de 2018), Clara recordou os passeios que davam juntos num pomar de macieiras que o pai plantara na quinta familiar de Tremez, em Santarém, quando ele lhe punha o polegar e o indicar por trás do pescoço e dizia “Anda, Tim”, numa alusão ao célebre cão dos livros dos Cinco: “Ao menos eu sei para mim, frame by frame, que todos os passos que dei a seguir na vida seguiram sem desvios o caminho silencioso que ia ter ao pomar. Só nós os dois e a passarada, em manhãs muito lindas, cintilantes de sol de Inverno.” (na aldeia, tratavam-na por “a filha do Professor” e, anos depois, dar-lhe-iam um sem-fim de nomes: “Clarinha”, “Minhoca”, “Pretinha”, “Ciganita”, “Agatachristie”; despeitada, ela chamava-lhes “fósseis”).

A infância foi passada em Angola, onde o seu pai prestava serviço militar. Muito nova, as fotografias de Jane Goodall com primatas nas páginas da National Geographic fizeram nascer o sonho de se tornar park ranger numa reserva africana. Mais tarde, escolheria Biologia, ao invés de Medicina, por entender que esta tratava apenas da morte, ao contrário da primeira, toda virada para a vida. Aos seis anos, no colégio de São José de Cluny, em Luanda, começou a escrever as primeiras histórias, hábito que não perdeu quando a família regressou a Lisboa e ela foi estudar no Liceu Francês Charles Lepierre e, depois, no rainha D. Leonor, sempre com notas excelentes.

Ambiente urbano e burguês, portanto, ao qual não faltava uma componente oposicionista, já que o pai, além de académico brilhante e cosmopolita, era um cidadão empenhado, primeiro como militante da Juventude Universitária Católica, depois como sócio n.º 1 da SEDES. À precocidade do talento da Clara aliou-se uma extensa e rede familiar de sociabilidades, o que permitiu que, com apenas 12 anos, colaborasse regularmente na “Capital”, num suplemento para jovens intitulado “Os Quadradinhos”, onde escrevia histórias e, mais tarde, já na adolescência rebelde, participava em “mesas-redondas, inquéritos e sessões de trabalho sobre tudo e mais alguma coisa.” “Era uma data de adolescentes a escrever e a mandar vir com tudo e com todos…”, recorda ela, acrescentando que no final de 1973 começaram a ter problemas com a censura. Noutra sua reminiscência, esta assaz expressiva, refere que, quando trabalhava na “Capital”, e estava na redacção sozinha, à hora do almoço, era hábito Assis Pacheco e Manuel Beça Múrias passarem por lá e dizerem um para o outro, em tom que ela ouvisse: “Estás a ver, pá, estás a ver? A filha do Professor vai lá, hã?” E foi. Tinha apenas 14 anos quando se deu o 25 de Abril, mas recorda que, nesse dia, “andou a pôr cravos nas espingardas, como toda a gente” e que “a coisa mais inesquecível foi a enorme sensação de alegria e o enorme espírito de festa que se começou a sentir logo de madrugada. Foi muito bonito, foi completamente subterrâneo, houve uma grande orgia telefónica naquele dia” (programa “Retratos – 25 Nomes, 25 Anos, 25 Dias”, RTP, 22/4/1992). Por ocasião dos 30 anos da revolução, afirmou, de resto, que era necessário prosseguir “a luta”, reconhecendo, porém, não ser tarefa fácil: “para as pessoas da minha idade, já só a parte da luta que implica educarmos decentemente os nossos filhos no meio desta pouca-vergonha, com toda a logística, e pagamento de contas, e horas de trabalho que isso implica, nos enche por completo os dias e nos deixa estafados. Eu, por exemplo, já nem consigo ler à noite – o que, nos tempos que correm, já seria só por si uma outra forma de continuar a lutar.”

Nos anos da revolução, o seu pai tornou-se destacado membro do Conselho para a Paz e Cooperação e vice-presidente da Associação dos Médicos Portugueses para a Prevenção da Guerra Nuclear, e Clara seguiu-lhe as pisadas, orgulhando-se ainda hoje de pertencer à geração que, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, lançou a célebre campanha “Salvemos o Lince da Serra da Malcata”, além de ter sido a primeira jornalista portuguesa a escrever sobre o ameaçado felídeo.

Em 1984, terminou o curso de Biologia na Faculdade de Ciências e, no ano seguinte, tornou-se assistente estagiária de biologia celular, histologia e embriologia da Faculdade de Medicina e doutoranda do Laboratório de Biologia Celular do Instituto Gulbenkian de Ciência. Publicou o seu primeiro livro – Anda uma mãe a criar filhas para isto – quando ainda era estudante, em 1983, a que se seguiu, em 1984, o seu primeiro título conhecido, Agrião!, retrato de uma família pobre de província que vem a conta-gotas para Lisboa, em busca de melhor vida.

Entretanto, em 1980, “O Jornal” abrira vagas para jornalistas estagiários e, a convite de Manuel Beça Múrias, que já a conhecia da “Capital”, torna-se profissional da imprensa, desenvolvendo então, e em paralelo, três carreiras distintas: jornalista, escritora e cientista. Em todas elas se destacou quer pela exuberância do brilho, quer pelo impressionante ritmo da sua produção. No jornalismo, foi redactora de “O Jornal”, de 1980 a 1985, e responsável científica do “JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias”, de 1983 a 1986. Como cientista, publicou nas mais prestigiadas revistas do mundo, dando à estampa artigos com títulos sexy como “Sperm aster formation and the cell cycle in monospermic and polyspermic cow zygotes” ou o inesquecível “Microtubule and chromatin configurations in the first cell cycle of rabbit parthenotes and nuclear transfer embryos”. E, como escritora, publicou cinco dezenas de livros, ou mais, cobrindo todos os géneros, do infantil à ficção científica, a ponto de a Infopédia dizer, sem favor nem esforço, que “poder-se-á chamar a Clara Pinto Correia a autora pós-moderna por excelência.”

A consagração maior surgiria com Adeus, Princesa, de 1985 (adaptado ao cinema em 1991, por Jorge Paixão da Costa), e, rezam as crónicas, com E se tivesse a bondade de me dizer porquê?, este em parceria com Mário de Carvalho. Jovem e bonita, com um impecável pedigree de esquerda e um curriculum multifacetado, Clara tornou-se famosa muito nova, como a própria, de resto, não deixou de reconhecer numa entrevista a Maria João Avillez, para o programa “Interiores”, de 9/10/1992, em que confessou que teve a dita, ou desdita, de ter “crescido em público”, sob o “olhar de toda a gente”, quando só tinha 19 anos e ainda não era perfeitamente madura. Maria João perguntou-lhe se ela não teria “um lado excessivo”, se não estava a tocar demasiados instrumentos em simultâneo, ao que ela respondeu com a sua insaciável curiosidade pela vida e pelos outros, com o seu horror ao tédio, com o facto de privilegiar o experimentalismo na escrita em detrimento da repetição incessante das mesmas fórmulas e, enfim, com a reduzida dimensão do país: “Portugal é um país muito pequeno, pelo que é muito fácil a pessoa começar a ramificar para outras áreas.”

Em 1989, fixou-se nos Estados Unidos como visiting scientist do laboratório de Sabina Sobel, na Universidade de Nova Iorque, em Buffalo, para execução do projecto de doutoramento. Além de razões académicas, a ida para o estrangeiro teve motivos pessoais, ou existenciais, de novo ligados ao peso de ter sido uma figura pública precoce: “a questão de uma pessoa ter crescido em público não é impune para essa pessoa. Uma pessoa começa a crescer em público aos 20 anos e aos trinta pergunta-se: ‘mas que pessoa é que eu sou? Sou eu ou sou a minha imagem?’ Hoje em dia, penso que sou uma pessoa muito mais madura, muito mais definida e muito mais em paz comigo própria do que antes de ir para a América.”

Regressou a Portugal em 1992, para se doutorar com louvor unânime no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, mas, logo a seguir, voltou para a América como postdoc, iniciando aí o período mais fecundo da sua carreira, sobretudo quando decidiu trocar a Biologia pela História da Ciência e, tendo por mentor Stephen Jay Gould, assinou aquele que é o seu livro científico mais importante, O Ovário de Eva – Ovo e esperma e preformação (The University of Chicago Press, 1997; Relógio D’Água, 1999). Não por acaso, a sua entrada na Wikipédia faz uma listagem das obras que citam o seu Ovário e, bem assim, das recensões que foram feitas àquela obra, muito mais numerosas do que as de outros trabalhos seus, como Return of the Crazy Bird – The sad, strange tale of the dodo, versão anglófona de Dodologia – Um voo planado sobre a modernidade.

Por essa altura – mais precisamente, em 1996 -, criou, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, a licenciatura em Biologia e o mestrado em Biologia do Desenvolvimento. Manteve, porém, a ligação à América, como research associate de Stephen Jay Gould no prestigiado Museum of Comparative Zoology da Universidade de Harvard, e, bem assim, como professora da Universidade do Massachusetts, em Amherst. Em 2002 e em 2001, respectivamente, abandonaria esses dois cargos e, em 2004, prestou provas de agregação em História e Filosofia das Ciências, na Universidade de Lisboa. Hoje, parece, é catedrática da Lusófona.

Apesar do que disse a Maria João Avillez, a quem falou do “efeito esquizofrénico” do dualismo entre a sua persona pública e privada, não só não abandonou o ritmo das suas aparições mediáticas como o intensificou mais ainda e, pior do que isso, transferiu-o para lugares mundanos. Talvez ofuscada pelo brilho dos holofotes, talvez desejosa de fazer, e bem, o que lhe dava na real gana, talvez como modo de vida, ou de estar na vida, talvez tão-só porque sim, o certo é que, a dada altura, o nome de Clara Pinto Correia deixou de surgir nos índices das publicações científicas e passou a figurar na capa das revistas do coração e de escândalos.

A somar a tudo isso, era cronista do “Diário de Notícias” e da revista “Visão”, apresentava programas na rádio e na TV (“Domingueiro”, 1982; “Música para Camaleões”, na Comercial, 1986; “Rumo à Lua”, na RTP2, 1996, Morfina”, na CNL, 1999-2000; “Travessa do Cotovelo”, na RTP2, 2001), continuava a publicar livros atrás de livros, a uma cadência de quatro ou cinco por ano. Em 1990, foi galardoada com o Prémio Máxima e são infindáveis as vezes que apareceu na televisão, onde começou por fazer, em 1982, a “Quinzena Teatral”, depois passou para a redacção do telejornal de domingo, com Carlos Pinto Coelho, a seguir no concurso “Vamos Caçar Mentiras, de Fialho Gouveia, etc. Nos arquivos da RTP, há registo de entrevistas de vida com Isabel Bahia (“Uma Boa Ideia”, 1986), Joaquim Letria (“Já Está”, 1987), Maria João Avillez, já citada, Carlos Cruz (“Carlos Cruz – Quarta-Feira”, 1993), Pedro Rolo Duarte (“Falatório”, 1997), Júlio Isidro (“O Amigo Público”, 1999), Rita Ferro Rodrigues (“A Ferro e Fogo”, 1999) ou Francisco José Viegas (“Ler para Crer”, 1999), para não falar dos inúmeros debates em que opinou sobre temas variados, desde o modelo ideal de família ao estado da ciência em Portugal, passando pela clonagem, o 25 de Abril, os hábitos de leitura, o fado marialva, os animais de estimação, a alma da nação portuguesa, o neofascismo, o consumo de drogas, a morte de Cristo, as grandes mudanças do milénio, o genoma humano, a figura paterna, a Barragem do Alqueva, a criminalidade em Portugal ou o pontificado de João Paulo II.

Depois, em Fevereiro de 2003, tudo desabou num instante. Descobriu-se que uma crónica sua sobre o Presidente Václav Havel, dada à estampa na revista “Visão”, era uma cópia quase integral de um texto que saíra pouco antes na revista “The New Yorker”, da autoria de David Remnick. O artigo deste chamava-se “Leaving the Castle”, o dela ostentava o título “O Castelo” e continha sete parágrafos inteiramente gamados. Clara defendeu-se afirmando que lhe apetecia esbofetear-se a si própria, disse estar “bastante envergonhada”, reconheceu o erro, pediu desculpa e prometeu, solenemente, “não volta a acontecer”. O lapso decorreu, segundo a própria, por ter feito uma transcrição do artigo da “New Yorker” para a sua crónica da “Visão” e depois, na hora de cortar e enviar o texto para Lisboa, aparou por distracção o que era da sua lavra, deixando incólume o que fora feito por outro (e que, por sinal, disse ela, “estava muito bem escrito”). Com o director da revista, Cáceres Monteiro, ausente em Bagdad, o director-adjunto, Pedro Camacho, considerou o assunto “muito grave” e prometeu que iriam tentar perceber se ocorrera “algum problema técnico” ou se fora mesmo um descarado plágio. A defesa de Clara cairia por terra pouco depois – e de forma estrondosa, fragorosa -, ao descobrir-se que, naquela mesma semana, um outro texto seu copiava mais um artigo da “The New Yorker”, desta feita de Henrik Hertzberg. Para agravar as coisas, e piorar o seu caso, Clara Pinto Correia tinha prestado, dias antes, um depoimento ao “Público”, e justamente sobre plágios, no qual afirmava que os alunos, ao copiarem trabalhos alheios, “nem se apercebem de que estão a plagiar e que o plágio é crime”, mostrando-se preocupada com a “normalidade” com que os miúdos assim procediam e afirmando, escandalizada, “já tive casos de desqualificar trabalhos porque me tinham sido entregues iguais até à última vírgula a material que estava on-line.”

Naquela semana horribilis, a “Visão” acabaria por prescindir dos seus serviços (e por pedir desculpas à “New Yorker”) e, em comunicado, a Oficina do Livro anunciou que suspendia a publicação de um livro de crónicas de Clara, já no forno. Nas páginas do “Público”, de 9/3/2003, Augusto M. Seabra causticou-a com ironia, num texto pejado de citações de Foucault, Orson Welles, Borges, Walter Benjamin e, a pior de todas, de uma afirmação da visada ao “Expresso”, na qual esta estava dizia, no gozo, que copiara “com muito amor e carinho.”

Ao contrário da maioria, que teria reagido ao escândalo optando por um prudente silêncio e por uma pausa para autoreflexão, Clara escolheu expor-se mais e mais ainda, iniciando um percurso em plano inclinado que a levaria a trilhar, lamentamos dizê-lo, os agrestes caminhos da vulgaridade e do kitsch: em 2004, fez de Marta, uma tia práfrentex, no filme “Kiss Me”, de António Cunha Telles, a estreia de Marisa Cruz no cinema; e, em 2007, ao lado de Paula Bobone, Rui Zink, Carlos Quevedo e Marisa Cruz, foi jurada do reality show  “A Bela e o Mestre”, da TVI, cuja sinopse diz tudo: “Imagine oito Mulheres de cortar o fôlego, e que, acima de tudo, gostam de se olhar ao espelho. Imagine oito Homens muito inteligentes, mas cromos e com pouco jeito para lidar com o sexo feminino. Uns e outros têm como objectivo provar que são capazes de ter uma dinâmica de equipa ao longo de várias semanas. Para isso vão viver juntos durante nove semanas numa casa. Genuinamente juntos!”

Em Janeiro de 2010, e como atrás se disse, deu brado a exposição, no Centro Cultural de Cascais, de dez imagens suas em pleno acto sexual com o fotógrafo Pedro Palma, por quem tivera uma paixão fulminante, culminada em casamento-relâmpago no Nevada, como relatou a revista “Caras”, de 9/1/2008. A imprensa, claro, rejubilou com o escândalo, dele fazendo títulos como “Orgasmos de Clara Pinto Correia retratados em Cascais” (Diário de Notícias), “As caras de prazer de Clara Pinto Correia” (Expresso), “Os orgasmos de Clara” (Correio da Manhã), “As fotos dos orgasmos genuínos de Clara Pinto Correia” (Sapo). Clara, de seu lado, disse tratar-se de uma “ideia inédita e extraordinária”, o que mereceu um comentário brejeiro do “Correio da Manhã”, “quanto ao extraordinário, é lá com ela. Agora, em relação ao inédito é que não. A saudosa ‘Gina’ tinha muitos orgasmos. E a cores.”  Outros lembraram, e bem, que, uma vez mais, a ideia de se fazer fotografar no clímax nada tinha de extraordinário, ou sequer original, havendo até sites só dedicados ao assunto, como um tal de “Beautiful Agony – Facettes de la petite mort.” Pedro Palma, por seu turno, garantiu que nunca teve por intuito “expor a Clara”, mas tão-só concretizar uma ideia que há muito lhe percorria o espírito: “queria perceber a evolução das expressões da mulher durante o orgasmo até à do sofrimento total, em que parece estar a ser torturada.” E chegou, inclusive, a entrar em conversações com Paulo Teixeira Pinto, da editora Babel, para a publicação de um livro de luxo, mas a coisa acabou por não se concretizar, o mesmo sucedendo com a ideia de levar a exposição até Madrid e de exibir uma amostra maior ainda, com 20 imagens, no mínimo.

Nas palavras de Clara, a exposição era, e cita-se, “um ensaio apaixonado e apaixonante sobre essa fuga infinita de um rosto através dos caminhos secretos do desejo partilhado: um rosto de mulher que se expõe naquilo que de si mesma desconhece e que nenhum espelho lhe pode oferecer.” Já ele, mais terra-a-terra, observou tão-somente que “a Clara quando faz amor abre muitos olhos, essa é a minha fotografia preferida.” Às revistas cor-de-rosa, Clara Pinto Correia mostrar-se-ia surpreendida com a polémica e jurou nunca ter tido “a pretensão de chocar nem provocar ninguém.” Simplesmente, teve uma “paixão avassaladora” por Pedro, e, então com 49 anos, garantia “nunca ter pensado voltar a viver momentos tão apaixonados na vida.” Por isso, e depois terem casado em Las Vegas, decidiram formalizar pelo Registo Civil nas vésperas da exposição, asseverando a escritora e bióloga, que “os pactos são para mim importantes, e é uma forma de dizer que levo isto a sério” (Correio da Manhã/Vidas, de 16/1/2023).

Dois meses depois, separaram-se. Pedro acusou-a de ter um amante e, pasme-se, garantiu que as fotografias do orgasmo eram puro “teatro”, marcando Clara, de novo, com o ferrete da falsidade. Esta defender-se-ia nas páginas da revista “Vidas”, do “Correio da Manhã”, onde negou ser infiel e afirmou, entre o mais, que não fizera teatro algum e que “o comportamento do Pedro está a ser ridículo e infantil, vil e de mau gosto.” Acrescentou ainda, ultrajada, “relações não se comentam nas revistas”, deixando-nos na dúvida sobre se a “Vidas” não era uma revista e se ela própria não estava a comentar o fim da sua relação amorosa. O diálogo com o repórter teve, de resto, o seu quê de caricato, pois, à resposta dela “sobre o fim do meu casamento não tenho grandes comentários a fazer. Sempre achei que a vida privada de cada um não é para se discutir em praça pública”, o jornalista retorquiu, genialmente: “Uma vez que já está na praça pública, não é melhor esclarecer?” “Pois, é isso mesmo”, respondeu ela, conformada.

A novela e a roupa suja prosseguiriam durante meses, sendo acompanhadas pari passu  pelas revistas da especialidade ou, como observou a “Lux”, de 18/11/2010, “a história deste casal preencheu as páginas da imprensa”, dando conta de que o site da “Nova Gente” noticiara, em primeira mão, a oficialização do divórcio. Depois disso, Pedro retomou a sua existência de bon vivant, amante de mulheres, de carros e relógios de luxo, até aparecer morto algo misteriosamente na bagageira do seu automóvel, em Agosto de 2017 (cf. “Pedro Palma, o ‘bon vivant’ talentoso que andava ‘desiludido com a vida’”, “Observador”, de 2/9/2017). Quanto a ela, optou finalmente por uma vida de maior reclusão e recato, foi viver para o Alentejo, parece, mantendo um pé na América. Retomou as crónicas, mas agora no jornal “24 Horas” e, depois, mais recentemente, no “Página Um”. Em Julho de 2018, em coautoria com Scott Gilbert, lançou um livro de ciência Fear, Wonder and Science in the New Age of Reproductive Biotechnology, na prestigiada chancela da Columbia University Press, o qual, sintomaticamente, não despertou o interesse dos editores portugueses. Pela mesma altura, iniciou a publicação de uma trilogia intitulada “A Tirania da Distância”, da qual já saíram dois volumes.

Foi com um visual radicalmente novo, de “tia” armada em gaiata, que se apresentou à revista “Eles & Elas”, de Julho de 2019, em reportagem onde se noticiava que recebera o Prémio Mulher Empreendedora 2017, no domínio da literatura, mas em que, do mesmo passo, se reproduziam afirmações terríveis da premiada, segundo as quais “isto é de facto muito estranho, mas a verdade é que eu ando para aqui a viver como se já estivesse morta.” Chegou até a pensar no suicídio, confessou: “de repente fiquei sem qualquer espécie de trabalho e tive de pedir ajuda a toda a gente em que ainda confiava. E vivia numa aldeiazinha muito isolada. E, à noite, às vezes pensava o óbvio. Claro que, se eu morresse, a esta hora já andava toda a gente a dizer que eu sou uma figura incontornável da segunda metade do século XX. Veja bem isto, é espantoso o que um autor tem de fazer para vender, né?” As pessoas, que outrora dissera serem a sua razão de ser, pareciam-lhe agora umas “tinhosas”, pois, “ao fim de 60 anos de grande esforço de estudo e formação, outros tantos de criatividade, e mais outros tantos de serviço ao país, a Clara Pinto Correia… é uma gaja que fez um plágio e teve um orgasmo!” Concluiu, em síntese, que “se eu não fosse capaz de rir na face das minhas desgraças, já tinha enlouquecido há muito tempo.” No fundo, e talvez sem se aperceber disso, Clara Pinto Correia foi e tem sido uma vítima não-inocente do país onde nasceu, terra de sentimentos impensados e extremados, que tanto faz endeusamentos súbitos como, logo a seguir, procede a defenestrações implacáveis, não raro motivadas por inveja (e, no caso dela, por atávica misoginia). A pequenez do “meio” (se quisermos, o parolismo do seu paroquialismo), aliada à consabida ignorância da classe jornalística, ou de uma parte substancial dela, propiciam estas genializações instantâneas, rapidamente convertidas em unânimes: uma vez “descoberto” um talento, todos se acotovelam para o louvar, convidando-o a falar sobre tudo e mais alguma coisa, na mira de abocanharem também um quinhão da “aura” da nova estrela. Neste afã de incensamento, por vezes exageram-se as virtudes ao ponto da beatificação em vida (como sucedeu com Agostinho da Silva) e, noutras, enfiam-se barretes de proporções gigantescas (Baptista da Silva). No final, é quase fatal ficar por fazer uma avaliação justa e equilibrada dos reais méritos e deméritos dos endeusados, exercício que, no caso de Clara Pinto Correia, levaria a distinguir aquilo que tem efectivo valor e interesse (quase todos os seus trabalhos de divulgação de ciência, muitos dos quais pioneiros) daquilo que se mostra mais duvidoso (praticamente toda a obra literária). Na verdade, e mesmo em relação a Adeus, Princesa, deveremos ter presente que, quando Vasco Pulido Valente disse que ele era o melhor romance português desde Os Maias, não o fez por simpatia, sentimento que não tinha, mas por desejo de originalidade e boutade, quando não de escândalo, com isso pretendendo amesquinhar de forma velada toda a literatura portuguesa do século XX, os Senas e os Nemésios, os Namoras e os Torgas, sobretudo os neo-realistas. Louvá-la tanto, sendo tão novinha, com 25 primaveras, não foi favor nem benesse, pelo contrário.

Hoje, com pouco mais de 60 anos, Clara Pinto Correia é mãe e avó de netos e, ao que parece, vive afastada das luzes da ribalta. Talvez não por vontade própria, mas com óbvios benefícios, sobretudo para ela, a quem bem se aplica o célebre dito de Nietzsche: como te renovarás, se antes não te tornares em cinzas?